terça-feira, 31 de maio de 2011

A Viagem de Alcemira



Alcemira decidiu ir com sua filha para a serra, visitar Neinha. Como não gostava de viajar, por ter medo de estrada e não confiar em ficar sobre rodas velozes, Alcemira estava nervosa pelo evento. Acordou cedo e passou o dedo indicador nos olhos pra retirar o excesso de remelas, já que andava com uma doença nos olhos e lacrimejava muito ultimamente. Olhou pra uma malinha modesta que havia arrumado na noite anterior e se lembrou num susto que ia esquecendo o terço. Arrumou-se, tomou um café-com-leite com biscoito maizena e começou a se preparar para a viagem. Passou um fio de água num pente fino e delicadamente penteou seus cabelos para trás, prendendo-os por fim. Sua filha, que morava duas ruas abaixo, ficou de passar às 11h em ponto pra buscá-la e antes de partirem em viagem, almoçarem num restaurante à quilo do bairro. 

- Mamãe, deixa de ser besta. É só uma viagem daqui até ali. Passa rápido e você vai ver como vai ser divertido. Neinha sempre pergunta pela senhora e agora as duas vão poder ficar batendo papo.

Chegando ao restaurante, a senhora pegou um prato muito pesado e quase deixou que caísse no chão - não fosse pelo reflexo da filha, que aos berros, recriminou a falta de força de Alcemira. Por isso, resolveu fazer o prato da mãe, perguntando o que ela queria e modificando todos os seus desejos.

- Não, nada disso. A senhora tá muito magrinha. Vou colocar um empadão de palmito e milho, sim. É gostosinho. Um caldinho de feijoada também...

Alcemira quase não tinha voz e força pra dizer que só queria um arroz com feijão e tomate, sem muita invencionice. Por fim, comeu o que a filha escolheu, empurrado por um copo de Coca-Cola - coisa que dona Alcemira definitivamente não gostava tanto.

Aí as duas foram pra rodoviária, com a filha reclamando das duas malas que carregava e questionando o porquê do peso das compotas que Alcemira levava à Neinha. Enfrentaram fila, compraram as passagens e, por sorte, o ônibus nem demorou. Sentaram-se confortavelmente nos primeiros lugares à frente e logo sentiram o poder do ar condicionado. Alcemira, que não tinha costume de viagem, começou a balançar as perninhas finas de tanto frio. A filha dormiu, de calça jeans e casaquinho à tira-colo. A barriga começou a doer do almoço e Alcemira se dirigiu lentamente até o fundo do ônibus, onde havia o banheiro. Por lá ficou uns 25 minutos. Quando a filha acordou e notou a falta da mãe ao lado, perguntou pra uma adolescente da outra poltrona se ela havia visto sua mãe. A jovem tirou os fones do ouvido, pediu pra que lhe repetisse a pergunta e disse que a velhinha tinha se dirigido ao banheiro. A filha foi à procura da mãe e quando abriu a porta difícil de abrir, viu Alcemira toda suja, chorando baixinho, com vergonha da diarréia. A filha, ao abrir a porta barulhenta, fez sair todo o cheiro da meia hora acumulada naquele cubículo.

- Ah, mamãe... que merda! Se cagou toda. - e disparou a rir.

A senhora constrangida pediu ajuda e a filha deixou a porta aberta enquanto ia buscar umas toalhas na bolsa. E dizia pelo corredor que a mãe não tinha jeito, deixando a par todos os viajantes nauseados com o cheiro da má digestão. Foram uns dez minutos de voz alta, exposição e limpeza. Tudo compartilhado no ônibus com deboche e mau jeito.

Alcemira foi conduzida ao seu assento, já limpinha, e não conseguiu olhar nos olhos de ninguém. Reclamou fraca com a filha que não devia ter comido o empadão com o caldo do feijão gorduroso. E com Coca-Cola - imagine! A filha falou pra ela parar de falar e descansar até chegar à cidade, porque agora era ela quem estava ficando enjoada com tanto verde, tanta árvore e tanta curva correndo na janela da paisagem serrana.

- Fica olhando as montanhas, mamãe.

Alcemira reclamou que não gostava de viagem, a filha arfou e seguiram pela estrada até avistarem a rodoviária, onde Neinha estava esperando com um lenço cor de abóbora na cabeça.

...

Ao chegarem à casa de Neinha, Alcemira logo de cara avistou um amontoado de bonecas velhas próximo ao portão velho, prontas pra serem levadas por crianças de rua ou um caminhão de lixo. Comentou e recebeu de Neinha a resposta:

- É, Mirinha... Menina se foi. Ta lá com Papai do Céu. Mas fazer o quê, não é?

A filha de Alcemira não havia lhe contado que o principal motivo da viagem era o falecimento de Zilá, filha de Neinha, uma menina de 32 anos que, por falta de oxigenação no parto, ficara aprisionada na cama sem compreender o mundo, se retorcendo e babando muito. A paralisia cerebral deixou a mulher aprisionada aos estímulos infantis. Ela só era chamada de Menina e Alcemira gostava muito dela. Por isso ela tonteou e recebeu a notícia como um baque. Uma lágrima escorreu e a filha não percebeu porque sabia que a mãe estava com aquela doença nos olhos. Mas quando Alcemira chorou como criança, murmurando palavrinhas de susto e doçura, Neinha abraçou e confortou a velhinha dizendo:

- É pra ficar conformada, Mirinha. Eu aceito o que Deus me dá. E Menina ficava presa naquela cama, dando trabalho, sem entender nada do mundo. Fiquei triste demais, era minha filha, mas sei que Menina agora voa com asa de anjo. E como não conseguia olhar pras bonecas dela, enfeitando o quarto, joguei tudo fora.

Alcemira pensava muito, mas pouco dizia. O enterro já havia passado e poucas pessoas foram. Ela queria ter chegado antes, pra consolar a família e se despedir de Zilá. O corpo que não parava quieto e vivia tenso e retorcido, agora jazia em paz.

Neinha então preparou um café muito ralo, quase intragável, que, para a felicidade de todos, veio fornido com biscoitos de polvilho muito bem feitos, torradas leves, uma broinha de côco e geléia de morango. Depois do café, Neinha disse que Alcemira iria dormir no antigo quarto de Menina e que já estava tudo arrumado pra recebê-la com o devido conforto. Alcemira, que tinha vergonha de tudo e achava que com tudo incomodava os outros, aceitou com pena, medo e vontade de ir embora.

À noite, pela madrugada, sonhou que Menina vinha lhe pedir a cama de volta, com três bonecas sujas no braço. Acordou querendo gritar o nome da filha, mas sua voz não alcançava força, apenas desconsolo. Tomou o copo de água que haviam lhe deixado no criado-mudo e resolveu dormir de novo. Pela manhã, acordou com os olhos fechados pelo excesso de remelas, não enxergando nada. Não entendeu onde se encontrava, em que cama dormia, ainda zonza de sono e estranhando o ambiente à volta. Por um breve instante, entendeu que todos os últimos acontecimentos foram uma soma de um sonho turbulento que havia tido. Aliviou-se, pronta com o dedo indicador a cutucar a abertura dos olhos. Sua mente foi despertando mais e depois ela entendeu de vez que a solução de seus tumultos não era pensar que tudo era um sonho, simples assim como nas histórias que ouvia quando pequena. Tudo era verdade, a mais pura verdade, tudo era a sua vida. E tudo se constatou com o aroma do café ralo da manhã e a voz de sua filha falando baixo à porta do quarto:

- Acorda pra cuspir, mamãe. Já são 8h. A gente tá na casa dos outros...

Marcelo Asth

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