terça-feira, 31 de maio de 2011

Azinhavre

Quando Laurita enlouqueceu, perdeu-se numa escuridão sombria como se vivesse em sonhos pesados. As pessoas consternadas a olhavam: enquanto uns se resolviam em prece, outros a acudiam, como se resolvessem buscar a alma perdida pelo tato forçado. Em seus delírios quase vestidos de estertores, ela entregava-se a imagens que pareciam ter pertencido a outras figuras já mortas há séculos. Parecia abrir a picadas de facão um mato denso que abrangia sua consciência, como um bebê de músculos incontroláveis e animados, na semelhança das marionetes que viu um dia numa feira da cidade quando criança. Via homens estranhos com caras antigas e não compreendia. Rios que se abriam pelas paredes de cal da casa, velas que ardiam em vermelhidão sôfrega e sombras de seres que se adicionavam às reais. Talvez a todas essas imagens se somassem um solo de violino engasgado, uma luz gris, um exalar de café em pó de tempos perdidos. Mas isso tudo é impressão.
Sua vista avermelhada de repente se via coberta por um pano muito úmido e gelado que uma mulher nova e alta trazia à sua fronte. Como carimbada na pele fervente através do pano, a água parecia evaporar dos poros assustados de Laurita. Sua febre extrapolava as medições que o termômetro marcava e as preces ressoavam num coro de agruras.
Vindo de dentro de sua cabeça seca e quase oca, da sua garganta aberta e talhada de gritos, um estampido forte como o de um estrondo desconhecido arrombou o recinto e todos se calaram, com seus olhos amedrontados. Calmamente deixou seu corpo se desfazer em leveza poética, com uma paz repentina e sombria que somente era visto na paisagem pacata dos matagais que se abriam depois da janela. Duas senhoras que se dispuseram próximas ao seu delírio gritaram em uníssono, porém em vão, o nome da Virgem Maria.
A vizinhança sempre andou pela casa de Laurita e este episódio foi partilhado com dó, num pensamento único que martelava na cabeça de cada um presente em seu quarto. Não sabiam o que acontecia. Todos, sem exceção, sentiram um medo único enquanto Laurita sorria despudorada e despedia-se da lucidez. Pensavam naquela mulher que antes fazia tão honradamente seus afazeres e que dava aulas de corte e costura no salão da igreja. Fazia parte também do grupo de preparo das sopas para os abrigos católicos, mas no fundo participava mesmo porque contava com muitas amigas rindo e conversando enquanto fatiava fino longas folhas de couve, esmagava o perfumado alho e sentia seu cheiro, cozinhava o frango para desfiar ainda quente – as pontas dos dedos ficavam vermelhas, mas resistiam - e ouvia-se tão presente o chiado da panela de pressão engolindo o presente. Um quadro antigo com uma imagem de Cristo trazia um detalhe em ferro onde o azinhavre havia se instalado sem ser percebido, tanta solidão.
Todos esses e mais tantos outros retratos dos fios de memória eram acessados desordenados com toques de invenção. Laurita calou-se para todo o sempre e adquiriu uma impressão de pássaro, tendo seus movimentos tornados em descabidos espasmos de vôo, incompatíveis com a mulher que se mostrava firme há alguns anos corridos.
Quando perdeu de vista os domínios e limites de sua mente, se entregou a um vôo livre e incessante. Seus pousos não eram corriqueiros, pois o vento, o ar em movimento, rompia e adentrava levemente seus tímpanos e ela ouvia essa gradação de sussurros secretos, como estímulos e ímpetos pra voar cada vez mais. Era como uma correnteza forte que a arrastava densa. E nesse bater de asas não percebia que sua energia se esvaía e aos poucos quedava leve e endurecida. Era perigoso percorrer correntes que não conhecia, mas seu desejo se perdia de controle e ela esvanecia como um pássaro doente que se deslumbrava nos ventos das terras estrangeiras. Alcançava um outro país num piscar de olhos, numa transição angustiante pra quem assistia. Mas ela sugestionava felicidade. De um jeito distinto, alheia às satisfações de antes, do cumprimento de tudo bem feito. Sua cabeça e seus olhos adquiriram uma agilidade de um bicho inocente.
Laurita, que era viúva, não sabia mais quem era o homem da foto que estava num porta-retratos sobre o móvel de madeira marcada em seu quarto. Às vezes achava que conversava com ele diálogos sem muito calor – mais pausas de espera.
Seus movimentos se aquietavam vez em quando e ela se tornava uma estátua de paz, confusa, esquálida e com olheiras doentes. Muitos disseram que a morte do marido foi o início da tonteira dela. Outros disseram que não imaginam como ela foi parar ali, naquela estampa esquecida.
Sua filha única, solteira, alta, calada e imponente, viu a mãe adquirir trejeitos de andorinha e mudez de uma flor morta. Por também ser íntima da solidão, passou a dormir com a mãe e a cuidar generosamente dela, num trato que nunca precisou pensar em estar exercendo. Mas a vida sempre foi bem aceita por ela em todas as circunstâncias.
Numa mesma cama, numa mesma noite fria, onde o silêncio machuca o momento só e se camufla de zumbido, duas pessoas enveredadas em suas cascas estão cobertas de sono. Cuidou de sua mãe nunca se lamentando. Talvez por temer a Deus ou a si mesma. Laurita transformou-se em seu despertador de todos os dias. As fronhas ficavam muito babadas. “Vou lavar”, pensava a filha. Mas se lembrava que era inverno e que não tinha sol que facilitasse secar. Precisava comprar mais fronhas e tantas coisas mais que se perderam nos desejos que morriam prematuros. Era sempre difícil sair de casa. Quando a filha fazia compras, uma vizinha ficava e, se precisasse, trocava a fralda com terrível pena. A filha voltava rápido à casa e organizava as latas no armário com excessos de regras sobre si mesma.
Cultivava prazeres ínfimos. Fora os momentos em que se dedicava ao zelo pela mãe perdida, ela se distraía com a televisão, que a hipnotizava numa outra espécie de loucura e entrega. Um abandono imperceptível que beijava suas pálpebras inexpressivas. Ptose. Passou a comer mais pão, a engordar e esquecer-se de quem era antes. Não resgatava a si nem pelo hábito de rever fotos de família. Não ligava. Às vezes, depois de um banho, secava bem os cabelos limpos e ligava a televisão que iluminava o espaço com um azul nuvioso. Aproximava seus cabelos da tela pra que a energia estática acariciasse seus fios com sedução elétrica.
De vez em quando um choro moído percorria as penumbras da filha, mas ela logo tomava jeito e se lembrava que não devia chorar. Pensava no mundo pelo qual sua mãe andava e às vezes sentia um pouco de desejo de estar como ela, pois sua mãe parecia realmente viver amena e livre das angústias às quais ela se dava.  
Laurita e sua filha, para os outros, pareciam tranqüilas e entendidas. As pessoas não enxergam muito o que há por dentro de tudo. Todos viam os méritos daquela relação de cuidado e conformidade. Hoje, uma panela de pressão chia na cozinha de sua casa. O botijão de gás traz uma capa antiga com babados vermelhos. Laurita a tem há muito tempo. Sua filha sempre pensa em se desfazer, mas logo hesita e prefere deixar tudo como está. “Mas as paredes de cal precisam de um retoque”, ela sempre se questiona. “Hoje teremos sopa”. Ventava forte e as folhas se despencavam em apoptose, em apoteose por aquela tarde, quase noite.
 
Marcelo Asth

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