Quantos anos se passaram até o momento em que, de forma especial, Agenor olhou o espelho com saudades? Uma fotografia olhar pra si se entendendo. Passara a noite inteira chorando e dizendo "você é a flor do meu jardim, não me deixa, não" e acordara com a filha e o genro batendo cedo à sua porta, com a notícia "pai, mamãe morreu". Havia deste momento de reflexo e reflexão no espelho, um longo dia de suspensa realidade, de memórias que nem conseguiam chegar, de uma alma enganada, não entendendo ainda o caminho de solidão à frente. Um dia de luto sombrio, de vestir-se de preto para um evento fúnebre, uma entrada num palco vazio de um velório cheio.
Denecir ficou 28 dias no sono pesado do coma, induzido e agoniante. Seus pulmões eram inflados por uma máquina hospitalar que faziam com que ela parecesse feita de brinquedo. Agenor não podia levar flores porque, apesar de bonitas, eram proibidas no ambiente hospital - possíveis bombas de infecção. Todo dia seu encontro com a esposa era mediado por enfermeiras, a filha ou um neto ou outro, além de um relógio que demarcava a aproximação dos dois amantes. Os limites do tempo são implacáveis. No momento da visita, chegava perto do corpo estranho da mulher que conhecia com intimidade e experiência, e se surpreendia com a vida que se mostrava de forma tão viva diante dele. Não pensava na morte, porque essa era já quase certa e inevitável para o momento; não se iludia com esperança. Pensava na força da vida, inédita a cada segundo, incerta em sua totalidade, que fez com que a esposa amada deixasse de ser aquela menina de 16 anos e jeito delicado, a mulher que ele amou na noite de núpcias, a mulher que amou quando deu à luz aos filhos, a mulher que se dedicou em tantos capítulos de uma história potente. Transitoriedade. Era o momento de virar as últimas páginas do livro. A mulher que ele via à sua frente era mais viva do que nunca porque vinha se transformando com a vida. A causa deste instante era passar pela vida sem precisar o mistério. Para todos os efeitos, a despedida lenta e inevitável marcava o pulso do seu coração num tempo da matéria. A pele flácida, o corpo branco, os cabelos pintados com as raízes também brancas e reveladas. Toda essa impermanência que se sabia finda dentro de algum tempo futuro. Um carinho na mão inerte.
Diante do espelho, Agenor pensou em ser forte, mas desistiu num átimo por achar mais interessante ser vivo também. "Não é preciso ser forte", falou sabendo-se sábio de tanta experiência. Deixou que seus olhos fossem fracos até se esgotarem de lágrima. Ficou olhando para a sua imagem fixamente, mas sua esposa não se encontrava ao lado - como no porta-retratos acima do console da sala. E nunca mais se reproduziria a fotografia que ali marcava a eternidade de sempre.
Marcelo Asth
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