terça-feira, 31 de maio de 2011

Celeste


Celeste deu entrada no hospital na quarta-feira pela manhã. Quando seu filho médico deu a sentença, impondo pra ela uma internação, ela pensou que dessa vez não passava. Pensou que nunca mais ia voltar pra casa, como sempre pensava quando ia para o hospital. Mês que vem completa-se seu centenário. Celeste não quis festa, nada com tumulto. Pensou num almoço simples com a família, na casa da filha que mora em Duas Barras, numa fazendola bem arrumada. Mas no momento em que adentrou o leito em que ficaria pra tratar pneumonia, esqueceu de almoço, de apetite e de centenário. "Desta vez não passo".
No entanto, com o passar dos dias, foi se sentindo melhor, mais forte e dada aos carinhos das enfermeiras. O esfigmomanômetro que apertava seu braço várias vezes ao dia era como um carinho que não sentia há tempos. Lembrava o aperto carinhoso e sensual de Antônio, seu falecido esposo. Despertou lembranças enterradas e mortas-vivas passearam no seu momento. Sua pressão, com todas essas reminiscências, ficava alterada - o que fez com que Celeste ficasse mais alguns dias sob cuidados. Perguntou à enfermeira, zonza de remédios, se estava com mal súbito. Ao mesmo tempo, ganhava uma força descomunal para uma velhinha de 99 anos de idade. Foi convertendo seu discurso dizendo que ia voltar já pra sua casa. E deu adeus a pneumonia.
No mês que se seguiu, lá estava Celeste, com um século nas costas e lembranças nos sorrisos. Almoçou com a família, ficou um pouco sentada com os bisnetos soltos correndo à volta, imaginando o que seria ter pernas com aquela energia. Parecia nunca ter vivido aquela vida de mocidade. Já estava tanto tempo acostumada à lentidão que, quando pegou pra ver a foto revelada da família inteira ao seu redor, percebeu um tempo parado no papel, reunindo ali ela e sua continuação, colocando lado a lado e na mesma condição de imagem fotográfica, os novos cheios de procura e mistério e a velha, cheia de encontro e sabedoria.

Marcelo Asth

Falésia

Do alto de uma falésia, num patamar acima do mar e sob a densa tela do céu que se desdobra além do horizonte se fundindo às águas, uma senhora observa o quadro. É um cenário de placidez estética e parcimônia espiritual. Talvez por isso seja manchado com os tons da melancolia. Seus olhos baixos, subalternos, soterrados em lembranças e molhados pelas lágrimas constantes, deixavam-se levar pelo longe das linhas que compunham todo o instante. Ela era tocada pelo vento e aquilo bastava. 

A senhora se pôs à frente do precipício que se precipitava ao mar estrondoso, quando batia nas rochas que estavam sob ela. Já ao longe o mar se acalmava e trazia um estado de calmaria. Ela começou a pensar-se natureza e viu que dentro dela, ondas batiam muito forte espancando suas rochas. Eram lembranças que iam e vinham, como o movimento dos mares. E essa ação insistente do fluxo marítimo provocava a ela erosão. Mas se ela se olhava para o mais distante que podia em sua alma, onde um horizonte se mesclava com o céu de seus pensamentos, via que ali, longe, porém possível e palpável (já que cabia em seu quadro de visão), um mar sereno merecia uma descrição de lago.

Ela, sendo tocada por este vento, como um maestro de único instrumento, mergulhou seus olhos baixos e tristes no fundo do mar que se abria diante dela e perdeu-os por alguns instantes. Viajando por entre ruas de água e sal e por sua imaginação. Ela perdia-se no momento único e real de ver com os olhos e com o momento ímpar e imaginário de sua alma.

Dentro da frouxa onda que se permite no mais profundo ponto do oceano, seus olhos pousaram como anêmonas a levar-se pelo misterioso. Absorvida pela possibilidade de estar ali, a senhora de fato chorou, mas sua mente compreendeu ser a água do mar que adentrava seu pensamento.

Seus dois olhos caíram dentro de ostras que estavam à espera. E as duas ostras fecharam seus olhos baixos por algumas eras. As conchas, casulos perdidos, se colocaram a trabalhar, a burilar, talhar e esculpir o que depois de tanto tempo seriam pérolas. Na imensidão do mar escuro, os olhos se transformaram com paciência e resignação. Um tesouro perdido como em contos de piratas.

A natureza tomou conta de velar sua tristeza, num porta-jóias natural. A senhora, que esperava por eras com os olhos vidrados e esperançosos, vendo a paisagem que se dispunha à composição e também adentrando seu próprio ser, decidiu abrir os olhos cheios de alma.

Paulatinamente sua pestanas se entregaram ao vento. A velha senhora chorou, derramando pelas rochas um pouco mais de mar, que foram suas angústias. Depois de mergulhar com encanto no seu próprio mar, jogou sua cabeça pra trás, mirando os olhos no sol que ardia em energia singular. Abriram-se as frestas de seu olhar, que viam agora estrias de nuvens brancas, um céu muito azul e uma liberdade que passeava por seu corpo como eletricidade.

Marcelo Asth

Ver-se

Ultimamente sentia que uma ruína se apoderava de seu destino. A começar, encarou com o olhar o seu produto corporal de anos. Seus braços quando acenavam pareciam se alegrar ou se fazer notar mais ainda, devido a pele flácida e desesperada que pendia. Um aceno quando se despedia de uma imagem que abandonava em câmera lenta. Tudo foi gradativo, mas perceber-se foi um momento de rapidez brusca. Quando o olho acorda, lamenta-se a passagem. Sempre há uma cordilheira no meio de um pensamento. 

Um clichê se apoderava verdadeiramente do seu pensamento, aquele sentimento de que parece que foi ontem. Destas palavras surge uma lacuna de dúvida, pois não se sabe se o tempo realmente passou porque não foi percebido, apenas se passaram os dias por movimento solar. E comer pão, fazer a vida, escovar dentes, dormir. O corpo também trouxe sóis e luas marcantes, enquanto o espírito ficava preso ao tempo em que se acostumou com a identidade. 

Nas costas de suas mãos - no lado da mão que não percebe as linhas da vida - várias manchas marrons pintavam a pele, como cracas que viajam silenciosas no oceano escuro que beija o casco de um barco velho. Por baixo da pele suas veias (cordas de harpa) já fazem seu serviço de estradas sabendo todos os caminhos decorados. Petéquias pipocaram nas costas, que estavam brancas demais. As unhas sob o esmalte rosa-chá se amarelaram. O rosto todo cansado de fixar-se tenro à face, querendo colar-se ao instante da vida, agora parecia escorrer e talhar os caminhos de expressão. 

Os próprios olhos, quando olhou-os atentamente, apresentando-os à sua imagem, perceberam que havia algo quase esfumaçado em seu tom - um brilho que se devorava e se perdia. Estes mesmos olhos que eram feitos de selvas e provocavam instintos num fragmento passado. Açulou suas angústias porque se permitiu ver desta forma. Não se reconhecia porque da última vez que se viu consciente foi quando descobriu que existia e via o que era ser criança.

Seus banhos agora não eram mais caprichosos; era difícil abaixar-se pra limpar com destreza cada parte que aprendeu a conhecer. A coluna não se curva tanto e as pernas não vem ao encontro das mãos. Vergonha de ficar nua por muito tempo. Pudor da água que toca o corpo esquecido. Medo de escorregar no piso do box do banheiro apertado. Põe-se agora o pijama e percebe um mau eflúvio pela manhã, como um flor pálida, seca e esquecida num vaso no canto da varanda.

Pra terminar, sabendo-se término, necessitando findar, aprendeu que ver-se nas trajetórias foi sua salvação. Todas as cordilheiras que dividem os pensamentos e as escolhas derrubam-se por si só e mostram que o poder realmente vem de cada um. O mais difícil neste momento é pensar que a imaturidade, a cegueira vital, a ignorância e a aceitação de convenções estabelecidas e generalizadas faz tantos caminhos tomados de bifurcação serem apenas trechos de passagem. Mas tudo era escolha; se ela soubesse... ver-se neste instante era como se o mundo inteiro a aplaudisse, vibrasse, bramisse e fizesse uma pausa espetacular pro compromisso de reconhecimento. Fazia assim tudo ser evidente e eterno, mais extraordinário do que a própria vida. Um exercício de memória pra lembrar do que foi esquecido e pra retomar o que em outros tempo fez questão de passar adiante. Se ainda desse tempo, voltava correndo contra a corrente, desatando e rompendo elos e cordas que atam-na ao tempo, que é um cachorro louco solto num bosque escuro.

Não preparou malas, pois sua única herança não era nem o corpo cansado e beijado pelo o que é finito. O que levaria para todo o sempre era a experiência de faiscar centelhas de vida interferindo em tantas vidas alheias, pisando espaços e revolvendo grãos de areia nas praias, marcando passos, lambendo sem saber as gotas de mistério que se instalaram em sua saliva sedenta de mais mistérios inesgotáveis.

Olhou-se no espelho. Percorreu a reprodução imagética como um raio-x de seus exames muito freqüentes. Não se fixou por muito tempo no reflexo. Partiu seu olhar, em primeira pessoa, para o campo visual de seu território e não sorriu e nem chorou. Nem pensou muito. Talvez tenha sentido ao mesmo tempo um desinteresse por clarear-se uma noção do que é vida e o que são os efeitos de um caminho, fora um alívio de gratidão pelo o que é elétrico e passeia em nossos corpos, quando nos colocamos dentro de um planeta com a resignação dos mortais.


Marcelo Asth

60

Sessenta anos de Iêda e Aída. Vinha com letras douradas o texto principal do convite de aniversário. Iêda escolheu o modelo, a cor e a fonte. Mandaram fazer uma tiragem limitada, pra uns 150 convidados. Uma grande festa no Tijuca Tênis Clube. 

Confeccionaram vestidos iguais, em tons muito semelhantes e pálidos. Iêda trajou o rosa chá e Aída o de tom desmaiado de pêssego. Fitas no mesmo lugar do cabelo. Uma foto das duas na antiga casa dos pais, no Grajaú, ilustrava o convite. As duas moravam juntas agora na casa de herança. Iêda e Aída eram gêmeas. Fora tanta semelhança - que os olhos dos outros identificavam -, existia dentro das duas um abismo de discrepâncias e algo velado que identificava um perigo. Talvez um barril de pólvora estivesse pronto a faiscar explosão.

Iêda nasceu cerca de 2 minutos antes de Aída, por isso se dizia sempre mais velha e experiente. Por toda a vida, tomou decisões à frente da irmã, fez pirraça, acusou a irmã de bagunças que ela não tinha feito. Aída trazia sempre o traço da boca numa parábola decrescente, enquanto Iêda sorria com uma lua crescente no lugar da boca.

A primeira paixão de Aída foi descoberta por Iêda num diário de cadeadinho, que ela havia ganhado de Tia Valdete. Idêntico ao que ela também deu pra Iêda. Guardava embaixo do colchão da cama com pudor e agilidade, sabendo que não existia lugar seguro em toda a sua vida. Iêda procurou e achou a revelação. Adolfo era um homem robusto, de bigode de escovão, olhos amendoados, topete endurecido na brilhantina e óculos de inteligente. Família tradicional tijucana, ia sempre visitar os primos do Grajaú - vizinhos das gêmeas. Aída ficava no portão, pensando de forma não convencional - seus pensamentos eram românticos demais e saíam num enfado de rimas e poemas tolos. Rimava imaginando e nunca expunha seus versos. Quando resolveu contar pro amigo diário de papel mudo e surdo, sem sentimento, escreveu em versinhos:

Quão grande a formosura
que emana Adolfinho...
meu coração bate na altura
do que merece meu carinho.

Sonho acordada na janela,
enquanto ele me olha certeiro.
Quero ser a rosa na lapela
que perfuma teu corpo inteiro.

Versos ordinários confidenciados a um diário que tinha um cadeado fácil de abrir. Iêda riu-se toda lendo e repetindo em voz alta pelo quarto. Ficou roseada no rosto, o que deve ter vindo de uma raiva que acelera o sangue e destaca as hemácias. Ruboriza e altera. A primeira providência que tomou foi ir à casa dos vizinhos com uma fatia enorme do bolo quente que a mãe havia acabado de preparar. Por coincidência, Adolfo estava a palestrar com os primos. Falava de uma viagem recente à Europa - naquele instante, descrevia Milão. Ela se chegou toda ofegante, com olhares diretos nos olhos amendoados do rapaz elegante e maduro. Começaram a namorar tempos depois. A mãe ficou orgulhosa do gosto da filha e Adolfo passou a não só passar pelo portão dos vizinhos, mas também a marcar presença nos almoços de domingo, na mesa farta e no coração farto de Aída.

Como Iêda freqüentava os bailes da Tijuca e, Aída, por sofrer, ficava em casa bordando e transbordando, um dia foi ela quem quis procurar o diário da irmã. Descobriu o local secreto (atrás da estante) e também que Iêda estava se engraçando pra cima de um tal de Emílio. E claro que Aída resolveu contar tudo pra Adolfo quando ele apareceu no portão da casa à procura de Iêda. Adolfo saiu transtornado dali e bateu com o carro, morrendo duas horas depois do acidente.

Depois desse episódio, as duas ficaram deprimidas e nunca mais desejaram paixão. Os anos de passaram, os pais também morreram e as duas continuaram na casa, administrando o lar. Antes da mãe morrer, as duas se formaram professoras e começaram a dar aulas na mesma escola. Iêda sempre inventava problemas no lar e desculpas atrapalhadas no dia de escolha das turmas e horários na escola, chegando sempre antes de Aída.

Muitos anos se passaram. O dia da festa chegou. 60 anos. Juntas. Aída e Iêda se abraçaram pela manhã, com certa distância. Tomaram um ótimo café da manhã, fizeram as preparações da festa e mais pra perto do momento, se arrumaram belamente. Iêda passou um perfume caro demais. Aída espirrou, por alergia. Quase na hora da saída de casa, Aída anunciou que estava de malas prontas, estava de mudança e que o caminhão já iria chegar à casa. 

Iêda gelou a cabeça e imaginou a festa, a casa e a vida ficando sozinha, sem um espelho onde pudesse maltratar a imagem que sufocava. Como iria trabalhar seu mundo, perder suas referências? Aída havia feito seus planos e os guardou secretos, nem compartilhando com diários ou indiretas. 

Estava pronta. O caminhão pequeno buzinou e Aída começou a sua mudança, que era pouca. Iria levar umas 2 malas de roupa, que havia feito durante uma saída de Iêda aos preparativos da festa. Uma poltrona pé-palito que seu pai adorava e algumas louças que lavava sempre. Mais caixas de bugingangas. Disse que ia fazer sua vida no interior do estado. Juntou dinheiro a vida toda, guardou o que ficou pra ela de herança. Agora pensava em passar seus últimos anos em liberdade de pensamento. Tudo planejado, dava pra comprar uma casa. Santa Maria Madalena, onde se enterrou Dercy, ídolo da chanchada.

Iêda chorou em silêncio, ficou muda e com pensamentos embaralhados. Não quis falar nada. Saiu de casa à pé, pisando duro e sem passos, cambaleando contida rumo ao Tijuca Tênis Clube. Receber seus amigos.


Marcelo Asth

Fotografia

Quantos anos se passaram até o momento em que, de forma especial, Agenor olhou o espelho com saudades? Uma fotografia olhar pra si se entendendo. Passara a noite inteira chorando e dizendo "você é a flor do meu jardim, não me deixa, não" e acordara com a filha e o genro batendo cedo à sua porta, com a notícia "pai, mamãe morreu". Havia deste momento de reflexo e reflexão no espelho, um longo dia de suspensa realidade, de memórias que nem conseguiam chegar, de uma alma enganada, não entendendo ainda o caminho de solidão à frente. Um dia de luto sombrio, de vestir-se de preto para um evento fúnebre, uma entrada num palco vazio de um velório cheio.

Denecir ficou 28 dias no sono pesado do coma, induzido e agoniante. Seus pulmões eram inflados por uma máquina hospitalar que faziam com que ela parecesse feita de brinquedo. Agenor não podia levar flores porque, apesar de bonitas, eram proibidas no ambiente hospital - possíveis bombas de infecção. Todo dia seu encontro com a esposa era mediado por enfermeiras, a filha ou um neto ou outro, além de um relógio que demarcava a aproximação dos dois amantes. Os limites do tempo são implacáveis. No momento da visita, chegava perto do corpo estranho da mulher que conhecia com intimidade e experiência, e se surpreendia com a vida que se mostrava de forma tão viva diante dele. Não pensava na morte, porque essa era já quase certa e inevitável para o momento; não se iludia com esperança. Pensava na força da vida, inédita a cada segundo, incerta em sua totalidade, que fez com que a esposa amada deixasse de ser aquela menina de 16 anos e jeito delicado, a mulher que ele amou na noite de núpcias, a mulher que amou quando deu à luz aos filhos, a mulher que se dedicou em tantos capítulos de uma história potente. Transitoriedade. Era o momento de virar as últimas páginas do livro. A mulher que ele via à sua frente era mais viva do que nunca porque vinha se transformando com a vida. A causa deste instante era passar pela vida sem precisar o mistério. Para todos os efeitos, a despedida lenta e inevitável marcava o pulso do seu coração num tempo da matéria. A pele flácida, o corpo branco, os cabelos pintados com as raízes também brancas e reveladas. Toda essa impermanência que se sabia finda dentro de algum tempo futuro. Um carinho na mão inerte.

Diante do espelho, Agenor pensou em ser forte, mas desistiu num átimo por achar mais interessante ser vivo também. "Não é preciso ser forte", falou sabendo-se sábio de tanta experiência. Deixou que seus olhos fossem fracos até se esgotarem de lágrima. Ficou olhando para a sua imagem fixamente, mas sua esposa não se encontrava ao lado - como no porta-retratos acima do console da sala. E nunca mais se reproduziria a fotografia que ali marcava a eternidade de sempre.

Marcelo Asth

A Viagem de Alcemira



Alcemira decidiu ir com sua filha para a serra, visitar Neinha. Como não gostava de viajar, por ter medo de estrada e não confiar em ficar sobre rodas velozes, Alcemira estava nervosa pelo evento. Acordou cedo e passou o dedo indicador nos olhos pra retirar o excesso de remelas, já que andava com uma doença nos olhos e lacrimejava muito ultimamente. Olhou pra uma malinha modesta que havia arrumado na noite anterior e se lembrou num susto que ia esquecendo o terço. Arrumou-se, tomou um café-com-leite com biscoito maizena e começou a se preparar para a viagem. Passou um fio de água num pente fino e delicadamente penteou seus cabelos para trás, prendendo-os por fim. Sua filha, que morava duas ruas abaixo, ficou de passar às 11h em ponto pra buscá-la e antes de partirem em viagem, almoçarem num restaurante à quilo do bairro. 

- Mamãe, deixa de ser besta. É só uma viagem daqui até ali. Passa rápido e você vai ver como vai ser divertido. Neinha sempre pergunta pela senhora e agora as duas vão poder ficar batendo papo.

Chegando ao restaurante, a senhora pegou um prato muito pesado e quase deixou que caísse no chão - não fosse pelo reflexo da filha, que aos berros, recriminou a falta de força de Alcemira. Por isso, resolveu fazer o prato da mãe, perguntando o que ela queria e modificando todos os seus desejos.

- Não, nada disso. A senhora tá muito magrinha. Vou colocar um empadão de palmito e milho, sim. É gostosinho. Um caldinho de feijoada também...

Alcemira quase não tinha voz e força pra dizer que só queria um arroz com feijão e tomate, sem muita invencionice. Por fim, comeu o que a filha escolheu, empurrado por um copo de Coca-Cola - coisa que dona Alcemira definitivamente não gostava tanto.

Aí as duas foram pra rodoviária, com a filha reclamando das duas malas que carregava e questionando o porquê do peso das compotas que Alcemira levava à Neinha. Enfrentaram fila, compraram as passagens e, por sorte, o ônibus nem demorou. Sentaram-se confortavelmente nos primeiros lugares à frente e logo sentiram o poder do ar condicionado. Alcemira, que não tinha costume de viagem, começou a balançar as perninhas finas de tanto frio. A filha dormiu, de calça jeans e casaquinho à tira-colo. A barriga começou a doer do almoço e Alcemira se dirigiu lentamente até o fundo do ônibus, onde havia o banheiro. Por lá ficou uns 25 minutos. Quando a filha acordou e notou a falta da mãe ao lado, perguntou pra uma adolescente da outra poltrona se ela havia visto sua mãe. A jovem tirou os fones do ouvido, pediu pra que lhe repetisse a pergunta e disse que a velhinha tinha se dirigido ao banheiro. A filha foi à procura da mãe e quando abriu a porta difícil de abrir, viu Alcemira toda suja, chorando baixinho, com vergonha da diarréia. A filha, ao abrir a porta barulhenta, fez sair todo o cheiro da meia hora acumulada naquele cubículo.

- Ah, mamãe... que merda! Se cagou toda. - e disparou a rir.

A senhora constrangida pediu ajuda e a filha deixou a porta aberta enquanto ia buscar umas toalhas na bolsa. E dizia pelo corredor que a mãe não tinha jeito, deixando a par todos os viajantes nauseados com o cheiro da má digestão. Foram uns dez minutos de voz alta, exposição e limpeza. Tudo compartilhado no ônibus com deboche e mau jeito.

Alcemira foi conduzida ao seu assento, já limpinha, e não conseguiu olhar nos olhos de ninguém. Reclamou fraca com a filha que não devia ter comido o empadão com o caldo do feijão gorduroso. E com Coca-Cola - imagine! A filha falou pra ela parar de falar e descansar até chegar à cidade, porque agora era ela quem estava ficando enjoada com tanto verde, tanta árvore e tanta curva correndo na janela da paisagem serrana.

- Fica olhando as montanhas, mamãe.

Alcemira reclamou que não gostava de viagem, a filha arfou e seguiram pela estrada até avistarem a rodoviária, onde Neinha estava esperando com um lenço cor de abóbora na cabeça.

...

Ao chegarem à casa de Neinha, Alcemira logo de cara avistou um amontoado de bonecas velhas próximo ao portão velho, prontas pra serem levadas por crianças de rua ou um caminhão de lixo. Comentou e recebeu de Neinha a resposta:

- É, Mirinha... Menina se foi. Ta lá com Papai do Céu. Mas fazer o quê, não é?

A filha de Alcemira não havia lhe contado que o principal motivo da viagem era o falecimento de Zilá, filha de Neinha, uma menina de 32 anos que, por falta de oxigenação no parto, ficara aprisionada na cama sem compreender o mundo, se retorcendo e babando muito. A paralisia cerebral deixou a mulher aprisionada aos estímulos infantis. Ela só era chamada de Menina e Alcemira gostava muito dela. Por isso ela tonteou e recebeu a notícia como um baque. Uma lágrima escorreu e a filha não percebeu porque sabia que a mãe estava com aquela doença nos olhos. Mas quando Alcemira chorou como criança, murmurando palavrinhas de susto e doçura, Neinha abraçou e confortou a velhinha dizendo:

- É pra ficar conformada, Mirinha. Eu aceito o que Deus me dá. E Menina ficava presa naquela cama, dando trabalho, sem entender nada do mundo. Fiquei triste demais, era minha filha, mas sei que Menina agora voa com asa de anjo. E como não conseguia olhar pras bonecas dela, enfeitando o quarto, joguei tudo fora.

Alcemira pensava muito, mas pouco dizia. O enterro já havia passado e poucas pessoas foram. Ela queria ter chegado antes, pra consolar a família e se despedir de Zilá. O corpo que não parava quieto e vivia tenso e retorcido, agora jazia em paz.

Neinha então preparou um café muito ralo, quase intragável, que, para a felicidade de todos, veio fornido com biscoitos de polvilho muito bem feitos, torradas leves, uma broinha de côco e geléia de morango. Depois do café, Neinha disse que Alcemira iria dormir no antigo quarto de Menina e que já estava tudo arrumado pra recebê-la com o devido conforto. Alcemira, que tinha vergonha de tudo e achava que com tudo incomodava os outros, aceitou com pena, medo e vontade de ir embora.

À noite, pela madrugada, sonhou que Menina vinha lhe pedir a cama de volta, com três bonecas sujas no braço. Acordou querendo gritar o nome da filha, mas sua voz não alcançava força, apenas desconsolo. Tomou o copo de água que haviam lhe deixado no criado-mudo e resolveu dormir de novo. Pela manhã, acordou com os olhos fechados pelo excesso de remelas, não enxergando nada. Não entendeu onde se encontrava, em que cama dormia, ainda zonza de sono e estranhando o ambiente à volta. Por um breve instante, entendeu que todos os últimos acontecimentos foram uma soma de um sonho turbulento que havia tido. Aliviou-se, pronta com o dedo indicador a cutucar a abertura dos olhos. Sua mente foi despertando mais e depois ela entendeu de vez que a solução de seus tumultos não era pensar que tudo era um sonho, simples assim como nas histórias que ouvia quando pequena. Tudo era verdade, a mais pura verdade, tudo era a sua vida. E tudo se constatou com o aroma do café ralo da manhã e a voz de sua filha falando baixo à porta do quarto:

- Acorda pra cuspir, mamãe. Já são 8h. A gente tá na casa dos outros...

Marcelo Asth

Entrega

A mãe de Patrício fazia bolos para fora. Recheio de ameixa, doce de leite, cobertura de maria-mole. Os de criança eram coloridos de confeitos de chocolate. Em papel-arroz a foto de uma criança. Muitas velas pra se comemorar queimariam sobre sua produção. Também torta salgada, com batata palha salpicada por cima. R$40 a torta grande, de amendoim. Saía muito. Foi essa a escolhida por Hermínia, que morava em Copacabana.
Patrício, rapaz novo, fazia as entregas e comprava os ingredientes. Era a forma de ajudar a mãe na sua fabriquinha caseira. Ele saiu de sua casa no Cachambi pra entregar a torta na Siqueira Campos. Um dia quente de enfado e correria, porque a torta tinha que chegar inteira e vistosa à casa da nova freguesa. Ele estava deprimido com o término de um namoro que não ia pra frente nem pra trás – a menina era muito da Igreja.
Dentro do vagão ele pensava muitas coisas. Olhava pro seu reflexo no vidro escuro da janela, somada a imagem aos clarões dos subterrâneos. Observou que muitos se olhavam da mesma forma e que desse modo dava pra olhar pra alguma mocinha num ângulo certo, sem ter que olhar diretamente, olhos nos olhos. Aí lembrou de Kellyane e murchou como a torta não podia. Pensou que todos os presentes no vagão tinham aprendido a andar e a falar. Pensou depois na quantidade de caixões que a terra consumiria. Um a um. E assim tentava imaginar a morte de cada um. Do senhor prostrado com a valise nas mãos e veias azuis nas mãos magras. Os óculos dele ficariam guardados pra sempre num estojo dentro de alguma gaveta. Da jovem de mochila rosa, cabelos pintados e piercing na sobrancelha, pensava em desastre.  Do senhor obeso que ocupava dois assentos, um ataque feio pela madrugada – esse teria um caixão interessante de se imaginar. Todos ali iriam morrer. “Que merda.” – falou quase num tom de resmungo. Quando chegou à estação Siqueira Campos, arregalou os olhos, se preparou pra levantar, reuniu energia e soltou na curva 94-D da estação. Acompanhou a fila da escada rolante e olhou para as pessoas como se fossem gado (incluindo ele mesmo, quando passou por um espelho). Resgatou o calor do sol e se dirigiu ágil até o prédio de Hermínia, onde ela pediu pra que o rapaz subisse.
Chegando ao 8º andar, encontrou uma porta aberta. Milhares de bugingangas espalhadas pela sala do apartamento, muitas rendas, quadros, um vaso de flores de plástico e outro de naturais, duas fumaças de incenso que convergiam num odor adocicado. De dentro da cozinha surgiu Hermínia, senhora solteirona, de ar jovial, batom rosa choque, organza, cetim e lenço florido à cabeça. Um brinco de pena pendia de sua orelha direita e um modelo antigo de óculos pendia no peito carregado por uma correntinha dourada.
Hermínia era dessas senhoras que freqüentavam com assiduidade a loja do Mundo Verde. Era mística, acreditava em bruxas e duendes, fazia banhos de florais e havia montado um altar com muitas pedras de diferentes cores e uma estátua de uma velha muito feia. O barulho do sino-dos-ventos de pedra tangenciava à irritação e era o desespero dos vizinhos. Tirava cartas e se sentia especial.  
- Qual é o seu signo? – perguntou a velha sem antes saudar o entregador.
- Ih, dona. Não sei dessas coisas não...
- Como não, rapaz? Diga o dia em que você nasceu.
E de um diálogo inquisidor, Hermínia foi tentando desvendar a aura e os mistérios do adolescente. Às vezes soltava uma frase de impacto, como se fosse uma revelação de uma velha bruxa sábia: “a vida é uma...”. E tremia e alongava os emes de cada frase, arregalando os olhos no final.
- Você é de Libra, rapaz. Sente aí que vou tirar umas cartas pra você. Não custa nada. Você é de Balança, sabe o peso das coisas...
E assim serviu uma fatia muito grossa da torta que ele havia trazido, num pratinho descascado na pintura – torta que era das mais pedidas e que ele nunca havia provado um pedaço, por não gostar muito de doces e por apenas realizar as entregas. Ele vivia numa casa com o quintal repleto de esculturas de açúcar, creme e glacê, tudo doce e enjoativo demais.
Ficou estático, abismado com o mundo imaginário e poderoso da nova cliente da mãe. Ele sentia sede e por pudor não ousou pedir nem água. Ela cortou seu pensamento com uma saborosa laranjada.
- Ei. Não fique olhando pra Cristina. Ela tem olho de vidro, mas tudo vê. Ela é mística também. – e a letra eme parecia nem caber em sua boca, de tanta trepidação. Riu regando um vaso com uma dália saltitante de cor estupefata.
Cristina era uma boneca de rosto de louça e cabelos que pareciam de gente, muito bem conservada, que ficava estrategicamente sentada no meio do sofá para que os espíritos maus não se sentassem na casa. Trazia roupas rendadas, como se fosse uma alma de séculos outros aprisionada no olhar torpe de cílios falsos.
- Era da tia da minha avó, que era uma mulher muito ousada pra época. – sentenciou Hermínia gesticulando com dedos cheios de anéis de pedras coloridas.
Patrício sentiu medo e talvez por isso tenha respeitado e ficado mais, comendo com prazer a torta que nunca havia provado. Foi inquirido, perguntado, revelado. Na verdade, nada demais. Hermínia dizia verdades que, pensando bem, poderiam caber a qualquer um, e não somente aos cariocas librianos de 13 de outubro, nascidos às 3 e 33 da madrugada fria do ano de 1992. O impacto com que Patrício recebia as informações, que era diferente. Ele sentia o poder e a verdade dos lábios rosa neon da senhora e ficou profundamente abalado com o diagnóstico da alma. Sempre que ia ao médico lhe receitavam anagélsicos, antibióticos e tratamentos. Ali, que remédio receberia?
Passaram quase 2 horas no relógio antigo, que ficava ao lado de um gato decorativo da década de 70. A torta já estava na metade. Ela disse que entraria em contato com a mãe do rapaz mais vezes. Patrício, por mais que tenha gostado do tratamento da senhora, do deixar à vontade e da vida nada costumeira que ela revelava, ficou apreensivo por pensar em mais entregas àquela figura estranha de Copacabana. Sentiu medo, mas ela parecia ler os pensamentos:
- Você virá mais vezes aqui. Adoro doce com amendoim e sua mãe acertou na medida. Eu tenho o prazer de não ter diabetes.
O tédio do garoto havia passado e nem Kellyane regressava à mente turbulenta. Tudo era gozado e soava como piada, parecia um filme.
- Eu que já estou muito velha, fico pensando no meu caixão, como vai ser. Eu não quero um caixão normal, não. Estou quase com o dinheiro certo pra comprar meu caixão, falta pouco. Aí vou ter que arranjar algum canto no meu quarto pra deixar ele em pé. Viu aquele monte de pedrinhas reunidas no canto ali? Vou trabalhar ele todo na tampa, encher de pedra energizada. Teve uma época em que eu queria que me queimassem, nessa coisa de cremação. Mas eu li muito sobre as bruxas e voltei atrás. Além do mais, vivo a terceira idade toda nesse apartamento cheio de pó pra ficar mais apertada numa caixa cheia de poeira? Acho bonito a gente se entregar à terra, virar energia, reciclar... – e emendava uma idéia na outra, sem cessar, interrompendo somente com gordas gargalhadas.
- Seu futuro será muito feliz. Mas não dê corda a meninas mais novas que você. Você terá sorte se o poço do seu peito fizer eco com um nome de mulher.
Ela pontuou o encontro ainda com uma boa gorgeta, que foi aceita a custo pelo rapaz, por falta de atitude e do que fazer. E como a luz do sol já não batia mais na janela daquela tarde e uma espécie de lusco-fusco obstruía o momento, Hermínia pediu licença pra acender 12 velas. Era um ritual e ele não entendia a necessidade dele estar presente. Ele pensou na solidão daquela senhora e ela falou muito baixo:
- Não sou sozinha, não. Eu estou rodeada de anjos.
O garoto se assustou e disse que era tarde, que precisava ir embora. Neste instante um som estranho, um ruído muito vivo, veio do sofá onde estava a boneca. Patrício gelou a alma e bambeou as pernas finas. Era Meia-Noite, um gato preto muito ossudo e preguiçoso que saiu por debaixo do sofá num bocejo que parecia eterno consumindo segundos naquele ar parado.
- Você vai agora com a proteção do Universo. – olhou pro alto e murmurou palavras que ele não entendeu.
E olhando pro fundo dos olhos do entregador de bolos, mostrou os seus olhos verdes e desgastados arrematando o encontro com um tom de oração de máximo poder e exorcização dos males:
- Tua alma é espiritual e indissolúvel. A bem-feitoria dos teus sinais é translúcida e refulgente. E quando jornadear feche sua cabeça pro mal do poder de sugar que os outros têm. São todos uns vampiros perigosos se tua energia é privilegiada. O nosso vínculo agora é tomado de poder por equilibrarmos nossas energias sem mutação. Toma essa pedra e guarda onde ninguém a toque com o olhar.
E coroando como um ponto final, na verdade súbita de quem se dizia sábia mulher poderosa, lançou com impacto a frase que sempre repetia, e que faria Patrício pensar por muitos dias:
- A vida é ummmma.
Patrício, por mais que não entendesse nada de misticismo e nem fosse à igreja - por não ter paciência de não acreditar naquilo que não vê – ejetou os pensamentos que vinham lhe deprimindo em desgaste, aceitando os conselhos da velha. Despediu-se com amizade e resquícios de timidez. Entrou no elevador sorrindo, deu boa noite ao porteiro e voltou com a alma flamejante pra Cachambi, correndo nos trilhos e se sentindo também poderoso e ousado, olhando firme pras pessoas e entendendo que cada um dos presentes no vagão do metrô era uma incógnita repleta de emoção, confusão e alumbramento na vida. O que cada um traria em suas casas, quais seriam seus segredos e revelações. O mundo parecia estar se abrindo como uma rosa desabotoando plácida e cheia de mistério. As possibilidades de atenção eram muitas, tem como ser feliz em tudo. Patrício mal esperava por conhecer outros lares e observar com atenção o mundo dos clientes da mãe, que a essa hora finalizava um bolo de tronco, de chocolate branco.
 
Marcelo Asth

Mãos de Fada


Silvana, mulher viúva, depois de 43 anos de casamento, descobriu-se apaixonada por sua grande amiga Eunice. As duas estreitaram seus laços após a morte de Adolfo - marido de Silvana - e a partir de então se frequentavam quase que diariamente. Moravam próximas uma da outra, numa rua bucólica de casas bem cuidadas. Do lado de fora da janela, as árvores faziam parecer que moravam muito distantes de qualquer burburinho de cidade grande.
Participavam juntas de muitos cursos promovidos por uma ONG que se localizava perto de sua rua. Gostavam de distrair suas cabeças ociosas. Corte e costura, culinária inteligente (onde se aproveitavam cascas e talos para a feitura de massas de pães com alto valor nutricional), economia do lar, artesanato (lindos os portas-jóias que as duas faziam com guardanapos coloridos e colados com habilidade, sem bolhas de ar) e diversos outros trabalhos manuais com passamanaria, rendas, aviamentos e sininhas. Tinham intimidade com tudo que suas mãos podiam realizar. Uma elogiava o que a outra fazia: você tem mãos de fada.
Silvana se dedicava em fazer bolos, trufas de sabores licorizados e caldos bem temperados, que levava sempre à casa de Eunice. Eunice, por sua vez, fazia empanados deliciosos, bolinhos de chuva e empadões de palmito, frango e champignon, que levava sempre à casa de Silvana. Não tinham vontade nem necessidade de fazer para outras pessoas, já que moravam sós e não precisavam vender o que produziam para aumentar a renda de casa (como bem orientavam as professoras). Gorda pensão dos falecidos.
Visitavam-se com abraços e beijos queridos. Silvana sabia visitar também em pensamentos. Não falavam dos falecidos maridos, nem fotos nos porta-retratos evidenciavam uma vida passada. Abriam suas portas, bem arrumadas e cheirosas. E rasgavam elogios junto com pedaços de papel crepom para um trabalho manual de colagem ou folhas de couve pra um cozido que preparavam com batatas bem servidas.
Silvana não entendia muito bem o que acontecia, pois nunca havia sentido essa estranheza que saía de sua cabeça como um alimento quente que sai do forno e espera ser conduzido à mesa pra se degustar. Ela ficava à noite em sua cama, matutando para definir-se, até que entendeu, por sua experiência de vida, que liberdade e vontade deviam andar juntas. Decidiu então assumir-se amando e não sentiu nem um pouco de vergonha quando se olhou nua defronte ao espelho para analisar-se como mulher apaixonada. Viu uma mulher diferente da que se entregou a Adolfo, passadas algumas décadas que agora estavam turvas de poeira. Uma entrega talvez não por paixão, porque este sentimento que experimentava agora era muito nítido e bem diferente daquela felicidade de ver-se casando. Ela sentia-se vigorosa em sua intenção. Percebeu que fora feliz porque havia erguido um sonho ao lado de um homem, sem muito se esforçar. Queria antes de tudo casar de branco, amamentar e aquelas coisas todas de sonho feminino antigo. Teve apenas uma filha (que agora morava num canto rico da Califórnia) e realizou-se rapidamente, cansando-se do sonho antes mesmo da morte separá-la de seu marido. Riu, ainda em frente à sua imagem, lembrando da jura de amor eterno que fez no altar, mas depois parou de rir por respeito. Entendeu também que amou, mas de outro jeito, pois sempre foi muito carinhosa. Viu-se atraente com sua pele pelada e pensou em Eunice de uma forma que não a constrangeu.
Nos dias seguintes, Eunice se mostrava com um brilho a mais em seu olhar. Seus pontos nos tecidos se mostravam muito bem dados e os desenhos de linha que ornavam as toalhinhas de prato eram de verdadeiro primor. Silvana, como sempre, elogiou.
Um dia, Eunice falou com Silvana que precisava compartilhar um grande segredo de confiança pra sua grande amiga, depois de darem um demorado abraço. Abraçar é um ato de se pôr entre braços e os quatro se acolhiam com intimidade. Eunice sorria, percebia-se sem jeito e perguntava se podia falar algo muito confidencial que ela vinha percebendo nos últimos tempos. Silvana gelou-se como em plena mocidade ao lidar com amor. Logo em seguida corou, pediu licença pra tirar um peixe com ervas do forno e, antes de ouvir a confissão, disse que colocaria uma música pra servir o almoço:

- Vou colocar um CD do Ray Conniff. Ou do Richard Clayderman! Esse eu adoro, é romântico... aí a gente conversa almoçando. Tudo bem? – perguntou Silvana com o coração acelerado, ajeitando o cabelo com a mão direita, mostrando unhas vermelhas bem pintadas.

- Claro! Tenho certeza que vai ser um ótimo almoço. Você é uma pessoa muito especial pra mim e quero saber uma opinião sua pra algo que venho pensando...

E assim o peixe com ervas tomou com seu aroma todo o espaço. Uma música melosa batida no piano soou como novidade. Sentaram-se à mesa, serviram-se e conversaram. Eunice, sem graça, disse que estava apaixonada. Silvana ouviu atentamente. Eunice começou seu discurso discorrendo sobre seus anos passados de casamento, dizendo-se não completa, mas sim sempre disposta em servir e ser feliz. Silvana balançou a cabeça, mastigando com lentidão. Eunice disse que precisava de rumos novos, de se doar a alguém de quem realmente gostasse e a quem admirasse, mas que deveria manter segredo por conta das duas filhas que às vezes queriam se intrometer demais na vida da mãe que morava sozinha.

Eunice comia fazendo caretas de prazer:
- Silvana, que delícia! Você tem mãos de fada!

Silvana ruborizou-se, apoiou a decisão da amiga e conduziu perguntas que levavam às respostas de que ela precisava. Eunice então pontuou, após elogiar o arroz com brócolis, dando sua última garfada no peixe delicioso e bebendo a limonada que merecia seu derradeiro gole:

- Sabe aquele senhor alto, distinto, o Cristóvão, que faz dança de salão comigo? A gente sempre se olhou demais... e eu tô apaixonada! Ele me pediu pra jantar com ele. O que você acha?

Silvana sorriu belamente (porque havia aprendido assim) e disfarçou seu desmoronamento com destreza:

- Ame, minha amiga. Ame. – disse, apertando com força sob a mesa a ponta da delicada toalha rendada que havia estendido para servir.


Marcelo Asth