terça-feira, 31 de maio de 2011

Entrega

A mãe de Patrício fazia bolos para fora. Recheio de ameixa, doce de leite, cobertura de maria-mole. Os de criança eram coloridos de confeitos de chocolate. Em papel-arroz a foto de uma criança. Muitas velas pra se comemorar queimariam sobre sua produção. Também torta salgada, com batata palha salpicada por cima. R$40 a torta grande, de amendoim. Saía muito. Foi essa a escolhida por Hermínia, que morava em Copacabana.
Patrício, rapaz novo, fazia as entregas e comprava os ingredientes. Era a forma de ajudar a mãe na sua fabriquinha caseira. Ele saiu de sua casa no Cachambi pra entregar a torta na Siqueira Campos. Um dia quente de enfado e correria, porque a torta tinha que chegar inteira e vistosa à casa da nova freguesa. Ele estava deprimido com o término de um namoro que não ia pra frente nem pra trás – a menina era muito da Igreja.
Dentro do vagão ele pensava muitas coisas. Olhava pro seu reflexo no vidro escuro da janela, somada a imagem aos clarões dos subterrâneos. Observou que muitos se olhavam da mesma forma e que desse modo dava pra olhar pra alguma mocinha num ângulo certo, sem ter que olhar diretamente, olhos nos olhos. Aí lembrou de Kellyane e murchou como a torta não podia. Pensou que todos os presentes no vagão tinham aprendido a andar e a falar. Pensou depois na quantidade de caixões que a terra consumiria. Um a um. E assim tentava imaginar a morte de cada um. Do senhor prostrado com a valise nas mãos e veias azuis nas mãos magras. Os óculos dele ficariam guardados pra sempre num estojo dentro de alguma gaveta. Da jovem de mochila rosa, cabelos pintados e piercing na sobrancelha, pensava em desastre.  Do senhor obeso que ocupava dois assentos, um ataque feio pela madrugada – esse teria um caixão interessante de se imaginar. Todos ali iriam morrer. “Que merda.” – falou quase num tom de resmungo. Quando chegou à estação Siqueira Campos, arregalou os olhos, se preparou pra levantar, reuniu energia e soltou na curva 94-D da estação. Acompanhou a fila da escada rolante e olhou para as pessoas como se fossem gado (incluindo ele mesmo, quando passou por um espelho). Resgatou o calor do sol e se dirigiu ágil até o prédio de Hermínia, onde ela pediu pra que o rapaz subisse.
Chegando ao 8º andar, encontrou uma porta aberta. Milhares de bugingangas espalhadas pela sala do apartamento, muitas rendas, quadros, um vaso de flores de plástico e outro de naturais, duas fumaças de incenso que convergiam num odor adocicado. De dentro da cozinha surgiu Hermínia, senhora solteirona, de ar jovial, batom rosa choque, organza, cetim e lenço florido à cabeça. Um brinco de pena pendia de sua orelha direita e um modelo antigo de óculos pendia no peito carregado por uma correntinha dourada.
Hermínia era dessas senhoras que freqüentavam com assiduidade a loja do Mundo Verde. Era mística, acreditava em bruxas e duendes, fazia banhos de florais e havia montado um altar com muitas pedras de diferentes cores e uma estátua de uma velha muito feia. O barulho do sino-dos-ventos de pedra tangenciava à irritação e era o desespero dos vizinhos. Tirava cartas e se sentia especial.  
- Qual é o seu signo? – perguntou a velha sem antes saudar o entregador.
- Ih, dona. Não sei dessas coisas não...
- Como não, rapaz? Diga o dia em que você nasceu.
E de um diálogo inquisidor, Hermínia foi tentando desvendar a aura e os mistérios do adolescente. Às vezes soltava uma frase de impacto, como se fosse uma revelação de uma velha bruxa sábia: “a vida é uma...”. E tremia e alongava os emes de cada frase, arregalando os olhos no final.
- Você é de Libra, rapaz. Sente aí que vou tirar umas cartas pra você. Não custa nada. Você é de Balança, sabe o peso das coisas...
E assim serviu uma fatia muito grossa da torta que ele havia trazido, num pratinho descascado na pintura – torta que era das mais pedidas e que ele nunca havia provado um pedaço, por não gostar muito de doces e por apenas realizar as entregas. Ele vivia numa casa com o quintal repleto de esculturas de açúcar, creme e glacê, tudo doce e enjoativo demais.
Ficou estático, abismado com o mundo imaginário e poderoso da nova cliente da mãe. Ele sentia sede e por pudor não ousou pedir nem água. Ela cortou seu pensamento com uma saborosa laranjada.
- Ei. Não fique olhando pra Cristina. Ela tem olho de vidro, mas tudo vê. Ela é mística também. – e a letra eme parecia nem caber em sua boca, de tanta trepidação. Riu regando um vaso com uma dália saltitante de cor estupefata.
Cristina era uma boneca de rosto de louça e cabelos que pareciam de gente, muito bem conservada, que ficava estrategicamente sentada no meio do sofá para que os espíritos maus não se sentassem na casa. Trazia roupas rendadas, como se fosse uma alma de séculos outros aprisionada no olhar torpe de cílios falsos.
- Era da tia da minha avó, que era uma mulher muito ousada pra época. – sentenciou Hermínia gesticulando com dedos cheios de anéis de pedras coloridas.
Patrício sentiu medo e talvez por isso tenha respeitado e ficado mais, comendo com prazer a torta que nunca havia provado. Foi inquirido, perguntado, revelado. Na verdade, nada demais. Hermínia dizia verdades que, pensando bem, poderiam caber a qualquer um, e não somente aos cariocas librianos de 13 de outubro, nascidos às 3 e 33 da madrugada fria do ano de 1992. O impacto com que Patrício recebia as informações, que era diferente. Ele sentia o poder e a verdade dos lábios rosa neon da senhora e ficou profundamente abalado com o diagnóstico da alma. Sempre que ia ao médico lhe receitavam anagélsicos, antibióticos e tratamentos. Ali, que remédio receberia?
Passaram quase 2 horas no relógio antigo, que ficava ao lado de um gato decorativo da década de 70. A torta já estava na metade. Ela disse que entraria em contato com a mãe do rapaz mais vezes. Patrício, por mais que tenha gostado do tratamento da senhora, do deixar à vontade e da vida nada costumeira que ela revelava, ficou apreensivo por pensar em mais entregas àquela figura estranha de Copacabana. Sentiu medo, mas ela parecia ler os pensamentos:
- Você virá mais vezes aqui. Adoro doce com amendoim e sua mãe acertou na medida. Eu tenho o prazer de não ter diabetes.
O tédio do garoto havia passado e nem Kellyane regressava à mente turbulenta. Tudo era gozado e soava como piada, parecia um filme.
- Eu que já estou muito velha, fico pensando no meu caixão, como vai ser. Eu não quero um caixão normal, não. Estou quase com o dinheiro certo pra comprar meu caixão, falta pouco. Aí vou ter que arranjar algum canto no meu quarto pra deixar ele em pé. Viu aquele monte de pedrinhas reunidas no canto ali? Vou trabalhar ele todo na tampa, encher de pedra energizada. Teve uma época em que eu queria que me queimassem, nessa coisa de cremação. Mas eu li muito sobre as bruxas e voltei atrás. Além do mais, vivo a terceira idade toda nesse apartamento cheio de pó pra ficar mais apertada numa caixa cheia de poeira? Acho bonito a gente se entregar à terra, virar energia, reciclar... – e emendava uma idéia na outra, sem cessar, interrompendo somente com gordas gargalhadas.
- Seu futuro será muito feliz. Mas não dê corda a meninas mais novas que você. Você terá sorte se o poço do seu peito fizer eco com um nome de mulher.
Ela pontuou o encontro ainda com uma boa gorgeta, que foi aceita a custo pelo rapaz, por falta de atitude e do que fazer. E como a luz do sol já não batia mais na janela daquela tarde e uma espécie de lusco-fusco obstruía o momento, Hermínia pediu licença pra acender 12 velas. Era um ritual e ele não entendia a necessidade dele estar presente. Ele pensou na solidão daquela senhora e ela falou muito baixo:
- Não sou sozinha, não. Eu estou rodeada de anjos.
O garoto se assustou e disse que era tarde, que precisava ir embora. Neste instante um som estranho, um ruído muito vivo, veio do sofá onde estava a boneca. Patrício gelou a alma e bambeou as pernas finas. Era Meia-Noite, um gato preto muito ossudo e preguiçoso que saiu por debaixo do sofá num bocejo que parecia eterno consumindo segundos naquele ar parado.
- Você vai agora com a proteção do Universo. – olhou pro alto e murmurou palavras que ele não entendeu.
E olhando pro fundo dos olhos do entregador de bolos, mostrou os seus olhos verdes e desgastados arrematando o encontro com um tom de oração de máximo poder e exorcização dos males:
- Tua alma é espiritual e indissolúvel. A bem-feitoria dos teus sinais é translúcida e refulgente. E quando jornadear feche sua cabeça pro mal do poder de sugar que os outros têm. São todos uns vampiros perigosos se tua energia é privilegiada. O nosso vínculo agora é tomado de poder por equilibrarmos nossas energias sem mutação. Toma essa pedra e guarda onde ninguém a toque com o olhar.
E coroando como um ponto final, na verdade súbita de quem se dizia sábia mulher poderosa, lançou com impacto a frase que sempre repetia, e que faria Patrício pensar por muitos dias:
- A vida é ummmma.
Patrício, por mais que não entendesse nada de misticismo e nem fosse à igreja - por não ter paciência de não acreditar naquilo que não vê – ejetou os pensamentos que vinham lhe deprimindo em desgaste, aceitando os conselhos da velha. Despediu-se com amizade e resquícios de timidez. Entrou no elevador sorrindo, deu boa noite ao porteiro e voltou com a alma flamejante pra Cachambi, correndo nos trilhos e se sentindo também poderoso e ousado, olhando firme pras pessoas e entendendo que cada um dos presentes no vagão do metrô era uma incógnita repleta de emoção, confusão e alumbramento na vida. O que cada um traria em suas casas, quais seriam seus segredos e revelações. O mundo parecia estar se abrindo como uma rosa desabotoando plácida e cheia de mistério. As possibilidades de atenção eram muitas, tem como ser feliz em tudo. Patrício mal esperava por conhecer outros lares e observar com atenção o mundo dos clientes da mãe, que a essa hora finalizava um bolo de tronco, de chocolate branco.
 
Marcelo Asth

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