quarta-feira, 17 de outubro de 2012

FRAGMENTO

Rompem as portas.
Sopra o tempo.
O velho tem poesia
pra contemporizar.
Conversa com o tempo
em telepatia -
o velho se completa
ao se contemplar.

Abrem as comportas.
Jorra a memória.
O velho é a experiência
de se resgatar.
Com verso no tempo
da reminiscência -
o velho desvenda
ao se reinventar.

Alisam as barbas.
Escorre a história.
O velho é a saudade
ao tempo saudar.
Futuro presente passado,
o antes-até-agora invade -
o velho espera na esfera
ao se fragmentar.


ASTH, Marcelo Azevedo. Fragmento. In: PIGNONE, Lohan Lage (Org.) Poesia.com. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012. 

domingo, 27 de novembro de 2011

Dominó



Uma calapsita, dois cactos, um peixe feio que refletia o neon, uma televisão de 1985 (que só deu problema duas vezes até hoje), um gato branco de porcelana na estante bamba, um sofá com a marca do lugar preferido e uma cortina florida (um lar de ácaros). Orandina no meio desses elementos, cosia, vendo o filme da tarde. Bastava um pio de bem-te-vi vindo de fora e a velha imitava o pássaro, numa mania besta. O café esquentando no bule novo, um pão quentinho que ela trouxe agora-agora, chinelas com meias, ar abafado, sorriso mental. Paz na terra às senhorinhas aquietadas, vida mansa que só.

O telefone toca. A velhinha pequena fica na dúvida se é em sua casa - há muito não ligam pra lá. Atende dizendo "pronto". É Ângela, que demora a reconhecer. "Ângela... Ângela... ah! Ângela, quanto tempo! Me desculpa, minha filha, é que já tô meio tan-tan."

A mulher que ligou não ligava há uns 3 anos. Era sua ex-nora. Ela e o filho de Orandina moravam em Gramado, sul do Brasil - foram pra lá há muitos anos e abriram uma sorveteria que não deu certo. Aliás, nada por lá deu certo, nem o casamento. Mas ficaram; a cidade era bonita. Ligou pra dizer que o ex-marido, filho da ex-sogra, o Everaldo, tava no CTI e que... 

Orandina gelou e desligou o telefone na hora, sem mais ouvir, porque CTI é caso sério. O nervosismo tomou conta e ela chorou sem saber o que fazer, parando imóvel ao lado da calapsita que ficou também nervosa em ruídos descontrolados. Saiu da casa a velha, ruminando uma quantidade imensa de "meu Deus" e esquecendo o café esquentando no fogo. Foi chamar no muro Ruth, vizinha boa, mas a voz não deu. Foi picada ali por uma abelha estranha que se enfiava entre as graxas - a flor feia que dava no lado de lá do muro da Ruth. A velha foi ficando tonta, inchando o rosto, mudando a cor. Entrou novamente pra sentar, perdendo o ar. Seu pé entrou por debaixo da dobra do tapete grosso e ela caiu batendo o ombro da bursite na mesinha de centro. A calapsita insistia berros, o peixe olhava assustado. Os ácaros de nada souberam. 

Por sorte o telefone tocou novamente - na raridade de duas vezes no mesmo dia. Era Ruth - que ligava pouco porque tinha o muro -, querendo saber se Orandina estava a fim de jogar dominó com ela. As duas jogavam vez ou outra pra passar o tempo, tomando café e falando da Igreja. Orandina atendeu golfando um "meu Deus" numa voz sem jeito, de agonia, e Ruth correu esbaforida num galope, deixando a Bíblia cair de debaixo do braço e deixando-se esquecer das coxas roliças assadas na saia de crente. 

Abriu o portão e por sorte Orandina não tinha colocado a tranqueta. Deu água pra velha, gritou Tijolo pra pegar o carro - que guardavam na vaga do prédio da frente. Correu pro hospital e, no caminho, deitada no banco de trás do Passat com Ruth, teve um infarto. Ruth gritou e Tijolo foi rezando alto e forte - um desespero desmedido. Foi pro CTI desacordada. Ruth se chocou, passou um tempo com Tijolo por lá, resolvendo as coisas, e ligou pra uma irmã que Orandina tinha na cidade. 

Quando Ruth voltou pra casa, cansada e abatida, com olhos fundos e opacos, sentiu cheiro de queimado e correu pra casa da velha vizinha. O café esquentando não era mais café: era uma massa preta fundida com o ferro do bule novo que já tinha queimado, junto a um pano de prato que dava início a um incêndio feio na cozinha tomada de calor. A calapsita de Orandina ficava na cozinha e já tinha morrido - coisa horrorosa mesmo de se ver. Ruth foi gritando pro Inimigo sair dali, pedindo ajuda de Deus e tentando falar a língua dos anjos (como os pastores faziam no culto). Tijolo providenciou água pra apagar o quanto podia e ligou pro 193.    

Everaldo nem ligava muito pra mãe, só dava um toque por mês - quando muito. Mas era filho, isso era verdade. Ela não ligava pra não incomodar. E ligar pra lá era mais caro. A velha poupava em tudo. "Filho a gente cria pro mundo". Ele trabalhava no CTI - Centro de Taekwondo IMPERADOR, ao lado da Gramado Fitness. Era dono da academia e professor de Taekwondo. Isso tudo depois da sorveteria não dar certo. Orandina não sabia pronunciar o que o filho fazia de jeito nenhum. "Essas lutas malucas de japonês". E também não era de ficar lembrando o nome da academia do filho, lá longe no Sul.

O que aconteceu foi um equívoco - talvez trapaça do Inimigo. É que Everaldo dava muita aula e pediu pra sua ex-mulher Ângela (com quem tinha agora um bom relacionamento, como amiga, e que trabalhava como secretária do CTI) pra que entrasse em contato com sua mãe pra convidá-la a passar uns dias em Gramado, chegando até mesmo antes do preparo da festa de debutante da neta Priscila. E pediu pra dizer que mais tarde, à noitinha, ligava de volta pra saber se a velha tinha se decidido a ir. A ex-mulher não entendeu o motivo de Orandina desligar o telefone em sua cara. Ficou pê da vida e disse pra Everaldo ligar depois - que ela estava sem paciência pra chilique de ex-sogra caquética.

Não teve telefone de volta. A irmã de Orandina foi pro hospital acompanhá-la, ligou pro Everaldo e contou o que havia acontecido - ou pelo menos uma pequeníssima parcela dos fatos ocorridos com a mãe dele naquele dia. Tem coisas que só quem vive é que sabe. 

Ângela recebeu a notícia, chorou feito criança e se lembrou com assombro da última vez que ouviu a voz de Orandina - sem saber que era ela que havia impulsionado, sem querer, a última peça da fila de dominós que a vida de Orandina dispunha secretamente.


Marcelo Asth

domingo, 17 de julho de 2011

Bodas de Ouro


Euríbio reclamava da quantidade de sal na comida, do tempero e do cardápio. Sílvia reclamava da lentidão do marido e dos pingos de urina na tábua da privada. Euríbio rezingava, falava das amigas de Sílvia. Sílvia protestava, dizia que Euríbio escutava alto o futebol na Rádio Esportiva. Ele não gostava dos enfeites demasiados, flores de plástico e miniaturas de louça distribuídas pelo lar. Ela reclamava quando ele reclamava dos preços, dos presentes dos netos, de não querer passar o cartão com medo de clonagem.

“Juvelino me disse que essas maquininhas estão registrando as senhas. Por isso eu não ponho mais meus dedos nelas.”
“Euríbio, deixa de ser ranzinza e chato. Velho zangado! Larga esses pombos quietos!”
E assim passavam os dias, nas caras mal-encaradas, na fuga do lar e das horas. A praça era o refúgio do homem. A igreja, o curso e a casa de Delir eram os dela.
Em três meses o casal faria 50 anos de casados. Eles não se lembravam disso. Talvez Sílvia até lembrasse, mas fazia que não – ou não tocava no assunto. Mas os filhos, que eram 5, família unida, todos casados e razoavelmente bem de vida, lembraram muito bem. De família católica, tradicionalista e festiva, Luiza foi a primeira a lembrar das bodas no almoço de aniversário de Euríbio. Getúlio, o filho mais velho, levantou a taça de vinho branco, fez com que os de copo ou taça vazia na mesa preenchessem seus conteúdos e bradassem uma “viva” ou algo parecido neste instante. Sílvia enrubesceu, baixou os olhos com tímido sorriso. Euríbio já disse na lata: “Mas já se passou muito tempo. A gente comemora todo dia”.
Os filhos, que sabiam bem das querelas, das disputas e das intolerâncias dos pais, minaram todo o pensamento alheio à grande festa. Foi um tal de “papai, vamos fazer uma festa pra todos!”, “vai ser lindo!”, “vamos planejar!”. “50 anos de casados tem que comemorar!”, que Euríbio e Sílvia, apaixonados pela família, ficaram quietos, sem trocar mais palavras. Depois de comerem os doces, tomados os cafés e tendo piadas e lembranças sido ridas, era noite quando todos saíram da casa dos pais. Ficaram os dois velhos, a sós.
Os filhos, nos dias seguintes, entusiasmados com o evento, colocaram a mão na massa. Cada um ficou responsável por um detalhe. Ia ser festa grande! Euríbio falou com Sílvia, numa manhã de sol, escondido por detrás das notícias do grande papel do jornal, que essa idéia era besteira, um dispêndio de gastos. Sílvia disse que era só pra agradar a família, feliz com a idéia. Ela mesma não fazia questão. Neste dia inteiro, nenhum dos dois dirigiu a palavra ao outro. Algo ficou estranho: estavam sendo empurrados a comemorar o que não havia mais porquê. E Sílvia pensou se realmente não havia motivos para tal. Euríbio, secretamente em seus pensamentos, também se questionou. Eles tinham criado 5 belos filhos, em boas escolas, com boas esposas e maridos se agregando ao seio familiar. Tinham aparecido netos com muita energia, passado dificuldades com um neto que nasceu com um problema no esôfago, tido a alegria de gêmeos como netos. Sílvia, arrumando a gaveta das cartas, bilhetes e recordações de papel, encontrou ali um pedaço de sua vida. Euríbio, reparando nos quadros com fotos de seus descendentes na subida da escada para o sótão, riu-se com gratidão e alegria.
Luiza, responsável pela parte emocional e da decoração da festa, pensou em projetar as fotos do casal num painel branco da casa de festas, desde quando eles se conheceram, num momento especial da festa. Hortência ficou responsável pelas comidas, pelo cardápio e pela contratação dos garçons. Adelaide marcou a igreja, conversou com o padre e contratou o espaço da festa. Marco Antônio disse que ia pagar metade de tudo; Getúlio, a outra metade, além de contratar o DJ e o fotógrafo.
Então os filhos foram envolvendo os pais na celebração. Luiza pediu para que Sílvia separasse as fotos dos dois jovens, do casamento deles, das viagens, dos nascimentos dos filhos e netos, e todos os episódios de importância. Sílvia, ao remexer no baú de fotos, pegou-se numa viagem ao tempo, relembrando de Euríbio moço e de seu encantamento por ele. Ela se lembrou de quando os dois se conheceram, do escândalo de seu pai quando descoberto o namoro, dos passeios com seu namorado moço e garboso. Recordou sua ansiedade pelo casamento, que faria de tudo pra ser daquele homem que a tirava o fôlego. Lembrou de Poços de Caldas e da viagem em excursão a Foz do Iguaçu. Suspirou pela tarde.
Euríbio foi com Adelaide ver a casa de festas. Ali ele ficou, durante uns minutos sossegado, esquecido pela filha enquanto ela tratava preços. E projetou ali a festa, imaginando Sílvia belamente vestida (como há muito tempo não fazia). Imaginou a dança que teriam de mostrar. Lembrou da valsa no casamento.
Sílvia foi provar a aprovar os quitutes e o menu com Hortência. Ali sentiu que a quantidade de sal era a medida certa. Pensou na reclamação de Euríbio e pensou que aquele jantar deveria ser como eram os jantares dos tempos de recém-casados.
Euríbio e Sílvia se aproximavam do dia da festa. Foram os dois juntos, acompanhados de Luiza e Marco Antônio, alugar algumas roupas para a família. Sílvia se sentiu novamente atraente no provador da loja, olhando-se no espelho e pensando no que Euríbio pensaria dela. Saiu por detrás da cortina com medo e se espantou com o elogio de Euríbio: “minha rainha” (como ele há muito não a chamava). Sílvia corou, lacrimejou e se pôs de volta ao provador correndo, dizendo um obrigado afobado. Lá dentro, colocou outro vestido, o que seria seu definitivo: um marrom de tecido nobre e aplicações de pedras compondo um desenho lindo. Saiu de novo do provador, desta vez ajeitando seus cabelos e imaginando sua maquilagem. Desta vez, Euríbio não estava ali para vê-la: ele se encontrava em outro provador, com Marco Antônio, vestindo seu imponente terno.
A atenção foi novamente despertada. Não imperavam ainda no lar os elogios. Estavam num processo de descongelamento do sentimento. Mas Euríbio não mais reclamava, media o volume do radinho, comia um almoço mais gostoso. Sílvia não notava mais pingos amarelos na privada e deixava seu marido se entreter com os pombos.
Chegado o dia da festa, Sílvia foi cedo para o cabeleireiro. Suas filhas a acompanharam, falando da vida com “bóbis” nas cabeças. Euríbio ficou em casa, ouvindo boleros e ensaiando passos de dança, trancado no sótão. Quando se viram, mais tarde, prontos pra ir à igreja, se emocionaram. Deram um beijo tímido, longe dos olhares dos filhos. “Meu esposo”. “Que dia!”.
Entraram na igreja, sob olhares de muitos (até dos que não conheciam). Fizeram as preces, sentiram-se novamente unidos e correram para a festa, no carro de Getúlio, para receber os convidados e tirar fotografias. Envolveram seus braços com taças de champagne, compondo a tradicional foto de quem se enlaça. Flash. Deram as mãos e se olharam. Flash. Foram para trás do bolo e sorriram. Flash. Mais flashs com famílias, amigos e conhecidos. Jantaram, assistiram à projeção das fotos e viram muitas senhoras chorando e borrando suas maquilagens. Os filhos não paravam de olhar o casal, com olhos de candura e felicidade. Ao final das fotos, Euríbio pediu um minuto de atenção, o que surpreendeu a todos. Usou do microfone para ampliar suas palavras e agradeceu Sílvia pelos 50 anos de amor, construção da família, momentos soberbos e fez juras de amor eterno. “Somos uma alma apenas” – Sílvia se pôs aos prantos e os dois deram um beijo repleto de faíscas.
Os convidados aplaudiram, comeram bolo (alguns levaram para casa e muito ainda sobrou), elogiaram a festa e o momento inesquecível. Os familiares que moravam em outras cidades se dividiram nas casas dos filhos – ninguém os deixou pagar hotel. Euríbio e Sílvia ficaram cansados com o dia, mas dormiram juntos – mais juntos que sempre, quase abraçados – entorpecidos de lembranças, de amor e plenitude.


Marcelo Asth

terça-feira, 31 de maio de 2011

Celeste


Celeste deu entrada no hospital na quarta-feira pela manhã. Quando seu filho médico deu a sentença, impondo pra ela uma internação, ela pensou que dessa vez não passava. Pensou que nunca mais ia voltar pra casa, como sempre pensava quando ia para o hospital. Mês que vem completa-se seu centenário. Celeste não quis festa, nada com tumulto. Pensou num almoço simples com a família, na casa da filha que mora em Duas Barras, numa fazendola bem arrumada. Mas no momento em que adentrou o leito em que ficaria pra tratar pneumonia, esqueceu de almoço, de apetite e de centenário. "Desta vez não passo".
No entanto, com o passar dos dias, foi se sentindo melhor, mais forte e dada aos carinhos das enfermeiras. O esfigmomanômetro que apertava seu braço várias vezes ao dia era como um carinho que não sentia há tempos. Lembrava o aperto carinhoso e sensual de Antônio, seu falecido esposo. Despertou lembranças enterradas e mortas-vivas passearam no seu momento. Sua pressão, com todas essas reminiscências, ficava alterada - o que fez com que Celeste ficasse mais alguns dias sob cuidados. Perguntou à enfermeira, zonza de remédios, se estava com mal súbito. Ao mesmo tempo, ganhava uma força descomunal para uma velhinha de 99 anos de idade. Foi convertendo seu discurso dizendo que ia voltar já pra sua casa. E deu adeus a pneumonia.
No mês que se seguiu, lá estava Celeste, com um século nas costas e lembranças nos sorrisos. Almoçou com a família, ficou um pouco sentada com os bisnetos soltos correndo à volta, imaginando o que seria ter pernas com aquela energia. Parecia nunca ter vivido aquela vida de mocidade. Já estava tanto tempo acostumada à lentidão que, quando pegou pra ver a foto revelada da família inteira ao seu redor, percebeu um tempo parado no papel, reunindo ali ela e sua continuação, colocando lado a lado e na mesma condição de imagem fotográfica, os novos cheios de procura e mistério e a velha, cheia de encontro e sabedoria.

Marcelo Asth

Falésia

Do alto de uma falésia, num patamar acima do mar e sob a densa tela do céu que se desdobra além do horizonte se fundindo às águas, uma senhora observa o quadro. É um cenário de placidez estética e parcimônia espiritual. Talvez por isso seja manchado com os tons da melancolia. Seus olhos baixos, subalternos, soterrados em lembranças e molhados pelas lágrimas constantes, deixavam-se levar pelo longe das linhas que compunham todo o instante. Ela era tocada pelo vento e aquilo bastava. 

A senhora se pôs à frente do precipício que se precipitava ao mar estrondoso, quando batia nas rochas que estavam sob ela. Já ao longe o mar se acalmava e trazia um estado de calmaria. Ela começou a pensar-se natureza e viu que dentro dela, ondas batiam muito forte espancando suas rochas. Eram lembranças que iam e vinham, como o movimento dos mares. E essa ação insistente do fluxo marítimo provocava a ela erosão. Mas se ela se olhava para o mais distante que podia em sua alma, onde um horizonte se mesclava com o céu de seus pensamentos, via que ali, longe, porém possível e palpável (já que cabia em seu quadro de visão), um mar sereno merecia uma descrição de lago.

Ela, sendo tocada por este vento, como um maestro de único instrumento, mergulhou seus olhos baixos e tristes no fundo do mar que se abria diante dela e perdeu-os por alguns instantes. Viajando por entre ruas de água e sal e por sua imaginação. Ela perdia-se no momento único e real de ver com os olhos e com o momento ímpar e imaginário de sua alma.

Dentro da frouxa onda que se permite no mais profundo ponto do oceano, seus olhos pousaram como anêmonas a levar-se pelo misterioso. Absorvida pela possibilidade de estar ali, a senhora de fato chorou, mas sua mente compreendeu ser a água do mar que adentrava seu pensamento.

Seus dois olhos caíram dentro de ostras que estavam à espera. E as duas ostras fecharam seus olhos baixos por algumas eras. As conchas, casulos perdidos, se colocaram a trabalhar, a burilar, talhar e esculpir o que depois de tanto tempo seriam pérolas. Na imensidão do mar escuro, os olhos se transformaram com paciência e resignação. Um tesouro perdido como em contos de piratas.

A natureza tomou conta de velar sua tristeza, num porta-jóias natural. A senhora, que esperava por eras com os olhos vidrados e esperançosos, vendo a paisagem que se dispunha à composição e também adentrando seu próprio ser, decidiu abrir os olhos cheios de alma.

Paulatinamente sua pestanas se entregaram ao vento. A velha senhora chorou, derramando pelas rochas um pouco mais de mar, que foram suas angústias. Depois de mergulhar com encanto no seu próprio mar, jogou sua cabeça pra trás, mirando os olhos no sol que ardia em energia singular. Abriram-se as frestas de seu olhar, que viam agora estrias de nuvens brancas, um céu muito azul e uma liberdade que passeava por seu corpo como eletricidade.

Marcelo Asth

Ver-se

Ultimamente sentia que uma ruína se apoderava de seu destino. A começar, encarou com o olhar o seu produto corporal de anos. Seus braços quando acenavam pareciam se alegrar ou se fazer notar mais ainda, devido a pele flácida e desesperada que pendia. Um aceno quando se despedia de uma imagem que abandonava em câmera lenta. Tudo foi gradativo, mas perceber-se foi um momento de rapidez brusca. Quando o olho acorda, lamenta-se a passagem. Sempre há uma cordilheira no meio de um pensamento. 

Um clichê se apoderava verdadeiramente do seu pensamento, aquele sentimento de que parece que foi ontem. Destas palavras surge uma lacuna de dúvida, pois não se sabe se o tempo realmente passou porque não foi percebido, apenas se passaram os dias por movimento solar. E comer pão, fazer a vida, escovar dentes, dormir. O corpo também trouxe sóis e luas marcantes, enquanto o espírito ficava preso ao tempo em que se acostumou com a identidade. 

Nas costas de suas mãos - no lado da mão que não percebe as linhas da vida - várias manchas marrons pintavam a pele, como cracas que viajam silenciosas no oceano escuro que beija o casco de um barco velho. Por baixo da pele suas veias (cordas de harpa) já fazem seu serviço de estradas sabendo todos os caminhos decorados. Petéquias pipocaram nas costas, que estavam brancas demais. As unhas sob o esmalte rosa-chá se amarelaram. O rosto todo cansado de fixar-se tenro à face, querendo colar-se ao instante da vida, agora parecia escorrer e talhar os caminhos de expressão. 

Os próprios olhos, quando olhou-os atentamente, apresentando-os à sua imagem, perceberam que havia algo quase esfumaçado em seu tom - um brilho que se devorava e se perdia. Estes mesmos olhos que eram feitos de selvas e provocavam instintos num fragmento passado. Açulou suas angústias porque se permitiu ver desta forma. Não se reconhecia porque da última vez que se viu consciente foi quando descobriu que existia e via o que era ser criança.

Seus banhos agora não eram mais caprichosos; era difícil abaixar-se pra limpar com destreza cada parte que aprendeu a conhecer. A coluna não se curva tanto e as pernas não vem ao encontro das mãos. Vergonha de ficar nua por muito tempo. Pudor da água que toca o corpo esquecido. Medo de escorregar no piso do box do banheiro apertado. Põe-se agora o pijama e percebe um mau eflúvio pela manhã, como um flor pálida, seca e esquecida num vaso no canto da varanda.

Pra terminar, sabendo-se término, necessitando findar, aprendeu que ver-se nas trajetórias foi sua salvação. Todas as cordilheiras que dividem os pensamentos e as escolhas derrubam-se por si só e mostram que o poder realmente vem de cada um. O mais difícil neste momento é pensar que a imaturidade, a cegueira vital, a ignorância e a aceitação de convenções estabelecidas e generalizadas faz tantos caminhos tomados de bifurcação serem apenas trechos de passagem. Mas tudo era escolha; se ela soubesse... ver-se neste instante era como se o mundo inteiro a aplaudisse, vibrasse, bramisse e fizesse uma pausa espetacular pro compromisso de reconhecimento. Fazia assim tudo ser evidente e eterno, mais extraordinário do que a própria vida. Um exercício de memória pra lembrar do que foi esquecido e pra retomar o que em outros tempo fez questão de passar adiante. Se ainda desse tempo, voltava correndo contra a corrente, desatando e rompendo elos e cordas que atam-na ao tempo, que é um cachorro louco solto num bosque escuro.

Não preparou malas, pois sua única herança não era nem o corpo cansado e beijado pelo o que é finito. O que levaria para todo o sempre era a experiência de faiscar centelhas de vida interferindo em tantas vidas alheias, pisando espaços e revolvendo grãos de areia nas praias, marcando passos, lambendo sem saber as gotas de mistério que se instalaram em sua saliva sedenta de mais mistérios inesgotáveis.

Olhou-se no espelho. Percorreu a reprodução imagética como um raio-x de seus exames muito freqüentes. Não se fixou por muito tempo no reflexo. Partiu seu olhar, em primeira pessoa, para o campo visual de seu território e não sorriu e nem chorou. Nem pensou muito. Talvez tenha sentido ao mesmo tempo um desinteresse por clarear-se uma noção do que é vida e o que são os efeitos de um caminho, fora um alívio de gratidão pelo o que é elétrico e passeia em nossos corpos, quando nos colocamos dentro de um planeta com a resignação dos mortais.


Marcelo Asth