Euríbio reclamava da quantidade de sal na comida, do tempero e do cardápio. Sílvia reclamava da lentidão do marido e dos pingos de urina na tábua da privada. Euríbio rezingava, falava das amigas de Sílvia. Sílvia protestava, dizia que Euríbio escutava alto o futebol na Rádio Esportiva. Ele não gostava dos enfeites demasiados, flores de plástico e miniaturas de louça distribuídas pelo lar. Ela reclamava quando ele reclamava dos preços, dos presentes dos netos, de não querer passar o cartão com medo de clonagem.
“Juvelino me disse que essas maquininhas estão registrando as senhas. Por isso eu não ponho mais meus dedos nelas.”
“Euríbio, deixa de ser ranzinza e chato. Velho zangado! Larga esses pombos quietos!”
E assim passavam os dias, nas caras mal-encaradas, na fuga do lar e das horas. A praça era o refúgio do homem. A igreja, o curso e a casa de Delir eram os dela.
Em três meses o casal faria 50 anos de casados. Eles não se lembravam disso. Talvez Sílvia até lembrasse, mas fazia que não – ou não tocava no assunto. Mas os filhos, que eram 5, família unida, todos casados e razoavelmente bem de vida, lembraram muito bem. De família católica, tradicionalista e festiva, Luiza foi a primeira a lembrar das bodas no almoço de aniversário de Euríbio. Getúlio, o filho mais velho, levantou a taça de vinho branco, fez com que os de copo ou taça vazia na mesa preenchessem seus conteúdos e bradassem uma “viva” ou algo parecido neste instante. Sílvia enrubesceu, baixou os olhos com tímido sorriso. Euríbio já disse na lata: “Mas já se passou muito tempo. A gente comemora todo dia”.
Os filhos, que sabiam bem das querelas, das disputas e das intolerâncias dos pais, minaram todo o pensamento alheio à grande festa. Foi um tal de “papai, vamos fazer uma festa pra todos!”, “vai ser lindo!”, “vamos planejar!”. “50 anos de casados tem que comemorar!”, que Euríbio e Sílvia, apaixonados pela família, ficaram quietos, sem trocar mais palavras. Depois de comerem os doces, tomados os cafés e tendo piadas e lembranças sido ridas, era noite quando todos saíram da casa dos pais. Ficaram os dois velhos, a sós.
Os filhos, nos dias seguintes, entusiasmados com o evento, colocaram a mão na massa. Cada um ficou responsável por um detalhe. Ia ser festa grande! Euríbio falou com Sílvia, numa manhã de sol, escondido por detrás das notícias do grande papel do jornal, que essa idéia era besteira, um dispêndio de gastos. Sílvia disse que era só pra agradar a família, feliz com a idéia. Ela mesma não fazia questão. Neste dia inteiro, nenhum dos dois dirigiu a palavra ao outro. Algo ficou estranho: estavam sendo empurrados a comemorar o que não havia mais porquê. E Sílvia pensou se realmente não havia motivos para tal. Euríbio, secretamente em seus pensamentos, também se questionou. Eles tinham criado 5 belos filhos, em boas escolas, com boas esposas e maridos se agregando ao seio familiar. Tinham aparecido netos com muita energia, passado dificuldades com um neto que nasceu com um problema no esôfago, tido a alegria de gêmeos como netos. Sílvia, arrumando a gaveta das cartas, bilhetes e recordações de papel, encontrou ali um pedaço de sua vida. Euríbio, reparando nos quadros com fotos de seus descendentes na subida da escada para o sótão, riu-se com gratidão e alegria.
Luiza, responsável pela parte emocional e da decoração da festa, pensou em projetar as fotos do casal num painel branco da casa de festas, desde quando eles se conheceram, num momento especial da festa. Hortência ficou responsável pelas comidas, pelo cardápio e pela contratação dos garçons. Adelaide marcou a igreja, conversou com o padre e contratou o espaço da festa. Marco Antônio disse que ia pagar metade de tudo; Getúlio, a outra metade, além de contratar o DJ e o fotógrafo.
Então os filhos foram envolvendo os pais na celebração. Luiza pediu para que Sílvia separasse as fotos dos dois jovens, do casamento deles, das viagens, dos nascimentos dos filhos e netos, e todos os episódios de importância. Sílvia, ao remexer no baú de fotos, pegou-se numa viagem ao tempo, relembrando de Euríbio moço e de seu encantamento por ele. Ela se lembrou de quando os dois se conheceram, do escândalo de seu pai quando descoberto o namoro, dos passeios com seu namorado moço e garboso. Recordou sua ansiedade pelo casamento, que faria de tudo pra ser daquele homem que a tirava o fôlego. Lembrou de Poços de Caldas e da viagem em excursão a Foz do Iguaçu. Suspirou pela tarde.
Euríbio foi com Adelaide ver a casa de festas. Ali ele ficou, durante uns minutos sossegado, esquecido pela filha enquanto ela tratava preços. E projetou ali a festa, imaginando Sílvia belamente vestida (como há muito tempo não fazia). Imaginou a dança que teriam de mostrar. Lembrou da valsa no casamento.
Sílvia foi provar a aprovar os quitutes e o menu com Hortência. Ali sentiu que a quantidade de sal era a medida certa. Pensou na reclamação de Euríbio e pensou que aquele jantar deveria ser como eram os jantares dos tempos de recém-casados.
Euríbio e Sílvia se aproximavam do dia da festa. Foram os dois juntos, acompanhados de Luiza e Marco Antônio, alugar algumas roupas para a família. Sílvia se sentiu novamente atraente no provador da loja, olhando-se no espelho e pensando no que Euríbio pensaria dela. Saiu por detrás da cortina com medo e se espantou com o elogio de Euríbio: “minha rainha” (como ele há muito não a chamava). Sílvia corou, lacrimejou e se pôs de volta ao provador correndo, dizendo um obrigado afobado. Lá dentro, colocou outro vestido, o que seria seu definitivo: um marrom de tecido nobre e aplicações de pedras compondo um desenho lindo. Saiu de novo do provador, desta vez ajeitando seus cabelos e imaginando sua maquilagem. Desta vez, Euríbio não estava ali para vê-la: ele se encontrava em outro provador, com Marco Antônio, vestindo seu imponente terno.
A atenção foi novamente despertada. Não imperavam ainda no lar os elogios. Estavam num processo de descongelamento do sentimento. Mas Euríbio não mais reclamava, media o volume do radinho, comia um almoço mais gostoso. Sílvia não notava mais pingos amarelos na privada e deixava seu marido se entreter com os pombos.
Chegado o dia da festa, Sílvia foi cedo para o cabeleireiro. Suas filhas a acompanharam, falando da vida com “bóbis” nas cabeças. Euríbio ficou em casa, ouvindo boleros e ensaiando passos de dança, trancado no sótão. Quando se viram, mais tarde, prontos pra ir à igreja, se emocionaram. Deram um beijo tímido, longe dos olhares dos filhos. “Meu esposo”. “Que dia!”.
Entraram na igreja, sob olhares de muitos (até dos que não conheciam). Fizeram as preces, sentiram-se novamente unidos e correram para a festa, no carro de Getúlio, para receber os convidados e tirar fotografias. Envolveram seus braços com taças de champagne, compondo a tradicional foto de quem se enlaça. Flash. Deram as mãos e se olharam. Flash. Foram para trás do bolo e sorriram. Flash. Mais flashs com famílias, amigos e conhecidos. Jantaram, assistiram à projeção das fotos e viram muitas senhoras chorando e borrando suas maquilagens. Os filhos não paravam de olhar o casal, com olhos de candura e felicidade. Ao final das fotos, Euríbio pediu um minuto de atenção, o que surpreendeu a todos. Usou do microfone para ampliar suas palavras e agradeceu Sílvia pelos 50 anos de amor, construção da família, momentos soberbos e fez juras de amor eterno. “Somos uma alma apenas” – Sílvia se pôs aos prantos e os dois deram um beijo repleto de faíscas.
Os convidados aplaudiram, comeram bolo (alguns levaram para casa e muito ainda sobrou), elogiaram a festa e o momento inesquecível. Os familiares que moravam em outras cidades se dividiram nas casas dos filhos – ninguém os deixou pagar hotel. Euríbio e Sílvia ficaram cansados com o dia, mas dormiram juntos – mais juntos que sempre, quase abraçados – entorpecidos de lembranças, de amor e plenitude.